RAÍZES IMPERIAIS E COLONIAIS DA PROIBIÇÃO - a tese (III)

Intro:

 

( Trabalhei no terreno durante bastante tempo. Estagiei e depois efectivei como toxicoterapeuta numa das áreas mais duras: a desintoxicação.  Entre 1991 e 1995 apoiei os drogados que passavam oito dias ( quando não desistiam) na primeira UD ( unidad de desintoxicação)  criada em Portugal: a do CAT de Coimbra, dependente do Ministério da Saúde. Também colaborei, desde o início, com a Comissão Nacional de Luta contra  a SIDA, no âmbito do Projecto Stop-SIDA, o primeiro programa de redução de riscos que envolveu troca de seringas em farmácias. Ensinei, no ISMT, também durante muitos anos, História  e Cultura das Drogas. Hoje sou só  um teórico   e historiador amador das drogas, com muito lastro prático, mas  ainda com mais respeito pelo estudo e pelo conhecimento não-clínico do problema.

Um dos aspectos mais deprimentes da toxicoterapia é a ignorância. Muitos técnicos da área comportam-se como cirurgiões que procuram o coração no joelho do paciente. Outros, panfletistas da war on drugs e políticos/decisores, manifestam , ou fingem manifestar, o maior  desprezo sobre a História, os factos e  os números. Este blogue pretende oferecer uma visão fria e rigorosa da realidade. As conclusões serão tiradas pelos leitores ).

 

 

 

A ligação entre cultura  e intoxicação é mais do que uma simples evidência histórica: é um dado neuroquímico. Nós temos neuroreceptores desenhados para  desfrutar dos opiáceos, por exemplo. No entanto, a cultura interessa-me mais, porque as políticas de droga interessam-me mais do que a construção cerebral. Um dos desse aspectos, sumamente atraente, é o da escolha: porque optam, ou optaram no passado,  certas culturas por umas substâncias em detrimento de outras?  De que forma essas opções determinaram a relação das culturas com as drogas?

Os Chicbas da Colômbia  pré-colonial  utilizavam uma solanácea, a Brugmansia, numa bebida  misturada com cerveja de milho para narcotizar os escravos e as viúvas ( que eram enterradas vivas) dos reis mortos .No Bornéu, algumas tribos  utilizam, também numa cerimónia fúnebre, a intoxicação com vinho de arroz enquanto passam em revista o repertório musical da tribo.

Na Europa, na nossa Europa,  outra planta da família das solanáceas, a Atropa Belladonna,  fez um percurso sedutor nas casas nobres das renascentistas Florença, Veneza   e Génova.  Os frutos da Belladonna ( um arbusto de porte médio) , uma espécie de cerejas negras, foram baptizados  de muitas formas: erva-do-diabo, deadly-night-shade, dwale ( do antigo norueguês  significando torpor ou transe) ou walkerbeere ( fruto das Valquírias). Os principais alcalóides da Belladonna são a atropina e a escopolamina. Depois  de uma  primeira fase de intoxicação caracterizada pela sonolência, chega a desinibição e a dilatação  da pupila ( daí o baptismo de Lineu). Depressão, sexo, langor: a Belladonna esteve lá.

A lista  é longa e o ponto é curto:a intoxicação , até à apropriação tecnólogica pelo ocidente imperial e colonial , era um affaire tradicional, ritualizado  e bem assimilado. Quando Albert  Niemann pega na ancestral  folha de coca, deita fora celulose, vitaminas, sais minerais, açúcar e e quase uma vintena de outros  alcalóides e exige apenas a síntese da  cocaína, está a obliterar séculos de História  e tradição. Os nativos dos Andes amassam as folhas numa bola ( não as mastigam, ao contrário do que se diz) e colocam-na ao canto da boca. Depois adicionam  um aditivo alcalino ( casca de árvore, conchas moídas etc) e só então as propriedades psicoactivas da coca são libertadas. Vêem a diferença?

Para a análise do nosso comportamento actual ( desde o início do século XX) face às drogas ( termo inexacto, já se vê, porque incompleto), é necessário compreender o que fomos deixando de lado e o que fomos acrescentando. Temos tempo, se os  deuses assim quiserem.

 

 

 

Bibliografia: Metcalf, 2008;  Oxenberg, 1998; Schroeder, 1996;  etc

 

 

publicado por FNV às 22:19 | link do post | comentar