Domingo, 28.05.23

Os europeus, os precursores do narcotráfico

A luta contra droga, a war on drugs, é a luta contra a dita cultura ocidental. Parece estranho, não é? Nem tanto.

Um bósnio-holandês e um marroquino-holandês presos no...Dubai. A operação Luz do Desertto reivindica a degola de um super cartel responsável por 1/3 do tráfico europeu de cocaína. A globalização pula e avança? Não. A globalização esteve sempre umbilicalmente ligada ao narcotráfico. E  fomos nós, europeus, que a inventou.

 

Tenho o prazer de ter , e há muito tempo, nas minhas estantes, a referência mundial em drogas de século XVI. Garcia da Orta : Colóquio dos  Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia, publicado em 1563. Foi traduzido por Lecluse ( Clasius) quatro anos  depois e agrupado a uma outra, de Cristovão da Costa , dada à estampa em Burgos em 1576. Entre outras coisas, uma interessantíssima: nenhuma referência ao ópio...fumado. Essa invenção, a primeira grande no narcotráfico mundial, viria depois pela mão de portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses: cruzando continentes e mares,  línguas e etnias. E tudo sem uma App.

 

Quem populariza, traficando e criando mercados, o ópio fumado são os europeus. No tempo de Orta e de Costa tínhamos três tipos de ópio ingerido: o do Cairo ( meceri na Índia), o de Adém ( negro e rijo) e o de Cambaia ( mais molle a mais louro na descrição de Orta), popular sobretudo na Índia.

O início do hábito de fumar o ópio é nebuloso, adopto como boa a tese javanesa e malaia. Misturar folhas de tabaco com ópio: o madak, que subsistiu até início do sex XX, continha apenas 0.2% de morfina. O hábito é passado, via trocas comercias,  ao sul da China. Espanhóis e portugueses levam o tabaco a Java Samatra e Sião. A diáspora chinesa estabelece os Hokkiens ( de Fujian) e os Teochuw ( de Cantão).

A conquista de Malaca pelos holandeses da VOC assegura às comunidades chinesas o monopólio da importação de ópio: 56 toneladas / ano em 1677. O resto é conhecido: as Guerras do Ópio ( 1839 e 1853, já mencionadas neste arquivo) nas quais os ingleses  ( e franceses) impõem a abertura de portos chineses ao tráfico de ópio produzido na Índia.

 

 

publicado por FNV às 11:49 | link do post | comentar
Domingo, 21.05.23

Uma coisa boa e uma má

 

É rara a atenção ao lugar que Portugal ocupa hoje no nacrotráfico, por isso é de elogiar o artigo desta semana na Visão. Um bom resumo do estado da nação. Lamentável e escusada é a chamada de capa - mafia síria da droga em Portugal . Vai-se ler a peça e a única coisa sobre isso  é o relato da investigação ao assassínio de um jovem na margem sul por dois sírios  com passaporte sueco. Ao menos podiam ter-se dado ao trabalho de explicar em que reside o osso da coisa: o captagon.

 

Há menos de meio ano o presidente Biden assinou o NDAA que incluiu  o “Countering Assad’s Proliferation Trafficking And Garnering Of Narcotics Act, mais conhecido por Captagon Act. Esta anfetamina  ( fenitilina) existe há muito tempo ( anos 60) , mas a razão é outra e envolve a Jordânia e a guerra:

However, as the Syrian economy faltered and the Assad regime grew more desperate for alternative revenue streams, the estimated $3.5 billion Captagon trade has transformed Syria into a narco-state, with industrial-sized production that has overwhelmed regional law enforcement systems and has stuffed the coffers of the regime and its partners, Lebanese Hezbollah and Iran’s Islamic Revolutionary Guard Corps-backed militias, the analyst added.

As ligações narco são instáveis por isso rearranjam-se facilmente. Saud Al-Sharafat, antigo general nos serviços de inteligência jordanos explicava aqui ( Setembro 2022) a possibilidade futura do tráfico de captagon se expandir para a Europa. Não menciona nenhuma mafia Síria em nenhum país europeu. Em 2028 já aqui faziam a avaliação da coisa e em 2023 este relatório detalha a natureza das sanções ao regime sírio por causa do captagon e também não refere a existência de mafia síria nenhuma a operar na Europa.

 

 

 

publicado por FNV às 09:51 | link do post | comentar
Domingo, 07.05.23

Bonaventure "Rock" Francisci

Uma das vantagens de estudar a história do narcotráfico é a de não ficarmos surpreendidos com os novos arranjos que se vão formando. Outra é a de conseguir compreender melhor esses novos arranjos.

 

Um mercado europeu retalhista de cocaína  estimado ( 2020) em 10.5 biliões de euros trouxe novas necessidades. Uma delas foi a de os europeus terem começado a produzir cocaína ( hidroclorido) a partir da cocaína-base ( pasta base).  Estão a ser dados passos para aprimorar a detecção, o jogo é eterno.

Entre 2018 e 2020 foram detectados 58 laboratórios construídos ( sobretudo na Holanda e na Bélgica)  à imagem do modelo tanque colombiano : zonas separadas de armazenamento, de reciclagem de solventes etc. Como é natural num franchise, técnicos mexicanos e sul-americanos estão na Europa para melhorar a produção e facilitar a importação  de matéria prima. O narcotráfico é o melhor negócio ilegal montado nas melhores regras do mercado livre.

 O que temos então é a adaptação narco às necessidades do mercado, à evolução tecnológica e às modificações geopolíticas. Vamos recordar outro franchise cultural trans-continental:

 

Depis da fuga dos franceses, a Air Laos Commerciale fazia a partir do aeroporto Wattay, em Vientiane,  voos diários levando 300 a 600 kg de ópio base que recolhia em  aeródromos poeirentos  no norte. Este ópio era enviado para o Vietname do Sul e para o Cambodja. Acontece que Bonaventure " Rock" Francisci , corso, estava muito bem relacionado com um conselheiro de Diem, Ngo Dinh Nhu. Assim, Francisci e outro corsos residentes em Vientiane aliaram-se a um dos mais poderosos sindicatos  de Marselha, os irmãos Guerini, e abasteceram Marselha. A French Connection? Bem , a história não é como no filme ( fica para outro texto), o que importa aqui é recordar como os franchises são tão velhos como o próprio narcotráfico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado por FNV às 09:40 | link do post | comentar
Sábado, 06.05.23

E la nave va

A situação piorou de tal forma que resolvi reactivar este arquivo. Como se pode notar, o assunto está completamente ignorado pelo discurso político ( governo, AR ), técnico ( PJ, MP) e mediático: os políticos nem o mencionam, os técnicos e os jornalistas limitam-se a reportar operações de apreensão. Existem as excepções que confirmam  a regra: o JN publicou  este ano  uma peça sobre os portos e o DN uma entrevista a Sylvie Figueiredo, no ano passado ( depois de o InSight Crime a ter entrevistado...), onde ela afirma sem rodeios:

Também assistimos a um aumento da corrupção direcionada às autoridades de controlo - fronteiras, polícias, investigadores - e aos magistrados. A corrupção expandiu-se, tal como a violência.

As coisas são o que são, como dizia o Victor Cunha Rego.

 

publicado por FNV às 17:50 | link do post | comentar | ver comentários (1)

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