Quarta-feira, 18.07.12

Afeganistão: histórias antigas.

O Great Game , se visto no mapa, era  facilmente perceptível: os britânicos vindos do sudeste, os russos vindos do noroeste. Encontraram-se no Afeganistão ao longo de grande parte do século XIX e jogaram o jogo do conde Nesselrode e do capitão Connoly. Não sei o suficiente sobre as intenções russas desse tempo, mas o jogo britânico parecia claro: prolongar a esfera de influência a partir da Índia, defender-se da cobiça russa. Em 1836, estava Mohammad Khan ocupado, a tentar reunificar o antigo projecto do grande Afeganistão de Durrani, quando os ingleses entram pelo país adentro. Esta terra de ópio é também terra de muitas coincidências:

- A primeira guerra anglo-afegã coincide com a primeira guerra do ópio sino-britânica: 1839 -1842.
- Os russos cheiram o terreno , primeiro com promessas ( a fronteira de 1873), depois com as armas ( o incidente de Pandejh em 1885) e, finalmente, em força, com a invasão soviética de 1979.
- Esta invasão é precedida em oito meses pela revolução iraniana; o Irão passará de uma produção média anual de 200 toneladas de ópio bruto para 325 nesse ano. Isto causará um impacto interessante na geopolítica do ópio que noutros posts da série analisaremos em detalhe.
- Não foram os EUA, através da CIA, os primeiros a armar os inimigos dos russos: os britânicos fizeram-no ( daí o incidente de Pandejh) até 1919, altura em que Amanullah sobe ao trono e se vira para Moscovo.

A ocupação britânica do Afeganistão é mitigada pela batalha de Maiwand ( dizia-se nos meios militares ingleses que não se pode combater na Ásia Central a partir de planos traçados à sombra de uma veranda indiana), mas a Inglaterra continuará a deter um droit de regard sobre o país. Muitas tribos são separadas com a delimitação da fronteira Durand ( 1893) e o Pamir é retirado aos afegãos; a confusão permanecerá por muito tempo. Curiosamente, os ingleses não encorajaram a produção de ópio durante o seu consulado colonial, mas o contínuo retalhar do território forneceu as bases para uma enorme produção futura. Em terra de cegos, quem tem a papoila é rei.

publicado por FNV às 10:09 | link do post | comentar | ver comentários (3)

Afeganistão:um salto para os anos 90

Analisemos hoje as razões do fracasso dos vários planos de erradicação da cultura do ópio postos em prática desde o início dos anos 90.
O primeiro projecto do UNDCP ( United Nations Drug Control Program) foi lançado em 1989. Dinheiro, escolas, hospitais, enfim, a parafernália habitual. Continha, como novidade, a célebre cláusula da papoila : era condição prévia de acesso ao financiamento o fim imediato da cultura de ópio. Ou seja, as populações de Kandahar, Helmand, Kunar e das outras províncias tinham de deixar de produzir ópio antes mesmo de obterem ajuda financeira para... deixar de produzir ópio. Como é óbvio, deu asneira e dupla: não só o plano não funcionou como muitas comunidades rurais passaram a chantagear o UNDCP ( "se não me dão dólares, produzo ainda mais").
Em 1997 um segundo plano arranca. Compreende já fundos destinados ao estabelecimento de unidades policiais anti-droga para além dos normais financiamentos ao fim da produção. O plano, que se estendeu até 2000, acabou dinamitado por diversas razões nem sempre fáceis de descodificar dada a linguagem burocrática deste tipo de agências. Sinteticamente: o terreno era perigoso, o clima político volátil ( nada de imprevisível, mas enfim...) e os lavradores mais ricos obtiveram o acesso privilegiado - e quase exclusivo - aos fundos da ONU.
Depois da invasão anglo-americana, o governo de Karzai, a ONU e os militares ocidentais fizeram uma fusão das tentativas anteriores acrescentada de alguma originalidade. Lançaram as ACEO ( Agressive Crop Erradication Operations) e os ALP ( Alternatives Livelihood Programes). O Senlis Council, crítico da actual política de combate ao ópio afegão, alerta para uma evidência que já aqui referi: os habitantes de zonas brutalmente pobres, como Helmand ou Kandahar, já não distinguem as forças de segurança que os libertaram dos talibã das brigadas anti-ópio que lhe querem tirar o sustento. Resultado: a propaganda talibã é alimentada e o ópio floresce, agora num quadro de resistência " cultural". Nos anos 50 o Helmand foi alvo de uma requalificação agrícola e hidro-eléctrica patrocinada pelos dólares americanos. O projecto foi abandonado e, para ajudar à missa, o caudal do rio Helmand passou de 2.221 milhões de m3 em 1991 para apenas 48 milhões em 2001. Numa região destas não espanta que, em 2005, os 26.000 ha de ópio tenham rendido 144 milhões de U$ enquanto que 80.000 ha de trigo tenham gerado apenas 44 milhões de U$. Em Helmand, cerca de 380.000 pessoas vivem das receitas do ópio.


publicado por FNV às 10:06 | link do post | comentar
Sexta-feira, 13.07.12

Drogas e crise

A Europa vai cruzar um período de recessão económica com um estado de adaptação a uma nova realidade toxicofílica. No início deste século, a cocaína e esse grande saco que são as drogas de síntese ( como os media as designam) implantaram-se  numa parte do continente. Na parte ocidental do continente, já que a as ex-repúblicas soviéticas são toda outra história com as suas rotas da heroína afegã do Pamir. Pertencem, no entanto, a uma Europa que ainda comporta uma zona intermédia - os ex-satélites soviéticos romenos, polacos, búlgaros etc - que ostenta traços específicos; por exemplo, imensos laboratórios para as diversas experiências com base em anfetaminas.
O que sabemos do passado é que as variações do clima económico arrastam consequências interessantes para a cultura da droga. Nos EUA, entre 1960 e 1970, o produto nacional bruto duplicou. Muito dinheiro foi injectado na War on Poverty estimulando um mercado paralelo de coisas boas, incluindo droga. As detenções por posse de marijuana passaram de 18,000 em 1965 para 188,000 em 1970 ( Musto, 1999). Carter, mais tarde, descriminalizou a posse de pequenas quantidades e os números baixaram. Também sabemos que períodos economicamente deprimidos implicam reajustes na cultura de droga. Falaremos sobre os efeitos do colapso bolsista de 1929 na International Opium Convention, sobre a Segunda Guerra Mundial, sobre o crack nascido do choque petrolífero de 79/80 e sobre a Rússia pós-soviética. Não se estranhe um possível regresso da heroína, a droga dos pobres: ele só ainda não aconteceu totalmente porque o Afeganistão, apesar de estar a produzir a bom ritmo, sofre custos de transformação da pasta em morfina base que são anormalmente altos.
As cidades europeias têm respirado boa parte da sua criminalidade - e da sua pujança - graças ao mercado da cocaína recebida via Atlântico. Estruturas, processos e hábitos estão definidos mas vão ter de mudar. Muitos soldados terão de se reciclar, muitos distribuidores terão de encontrar novas formas de atrair o consumidor.
Falaremos um pouco sobre tudo isto ao sabor do vento.

 

publicado por FNV às 10:58 | link do post | comentar
Quarta-feira, 04.07.12

Do Aleixo à Pasteleira

Para não estarmos sempre de volta das grandes histórias e dos  grandes espaços, um exemplo local: a transferência do tráfico do bairro do Aleixo para outras zonas do Porto. Nesta peça podem constatar o início do processo e nesta podem  confirmar a evolução do mesmo.

O mercado de droga, pela sua natureza ilícita,  é altamente adaptável.Não existem contratos, rendas legais, impostos,  trespasses ou marcas registadas. Existem, claro, pagamentos e comissões consoante  as conquistas  dos pontos de venda, mas é tudo fluído e undercover. Os consumidores não seleccionam os fornecedores em função de uns repuxos no átrio ou de cartões  de pontos e são indiferentes à decoração ou às facilidades de estacionamento ( aqui é no parking, just business).

Quando um autarca decide demolir um bairro que é um ninho de tráfico de droga, a única certeza que devia ter é que esse tráfico vai espalhar-se, como metástases, pelos outros bairros da cidade.

 

publicado por FNV às 21:55 | link do post | comentar | ver comentários (1)
Domingo, 01.07.12

The French Connection (i)

Em 1946, o nosso Lucky Luciano, como já vimos, um sobrevivente da bela experiência que  foi a Lei Seca, é posto em liberdade por pressão dos serviços secretos  americanos. Deportado para Itália, inicia, como também já  referi,   a melhor rede de tráfico de heroína  dos anos 50-60. Do Líbano  e da Turquia, a heroína chegava a Palermo, dava umas voltinhas pela Europa e desembarcava em Cuba ( já tínhamos visto isto também). Em Havana, Santo Trafficante , em rede com Meyer Lansky, embala  a droga para Nova Iorque. Ora bem, anotem  mais uma preciosa  colaboração dos EUA ( os líderes da war on drugs) para o sucesso do narcotráfico mundial. Falta perceber o que foi,  então,  a French Connection.

Os laboratórios sicilianos (  também já vimos em posts anteriores),  que processavam a pasta de ópio libanesa  e turca,  deixaram,  a certa altura , de dar conta do recado. Os historiadores  e analistas dividem-se quanto às razões deste fracasso: falta de capacidade operacional, quebras de segurança, pressão americana sobre os governos italianos. Seja como for, a partir de 1951 ( data da descoberta pela policia do primeiro laboratório) , a mafia corsa  começou a processar a pasta de ópio em Marsela. Nascia a French Connection, masi exctamente, a Marseille Connection.

Os corsos funcionavam de forma diferente da mafia siciliana. Constituam  uma organização menos  rígida, mais  cosmopolita ( tinham contactos no Canadá, Indochina, Norte de África etc) e especializada no contrabando e na química . Luciano e os outros patrões de Nova Iorque simplesmente adaptaram  o esquema a Marselha, benefeciando de uma enorme vantagem: a França fechava os olhos  à French Connection. A razão? Simples: os corsos não vendiam em território  francês.  Isto explica a impunidade quase  total em que viveram, até 1972, os laboratórios  marselheses.

As raízes do savoir faire marselhês remontam a dois personagens de filme: François Spirito e Paul Bonaventure Carbone. Colaboracionistas durante  a ocupação nazi, inimigos figadais dos sindicatos  comunistas  de Marselha, já em 1929 tinham começado a exportar heroína para os EUA ( Spirito foi preso em 1939 por ter contrabandeado 25 quilos de ópio a bordo do SS Exeter) . Em 1931,  Simone Sabiani, maire interino de Marselha, e fascista notório -  fugiu para Sigmaringen ( dirigiu as LFV)  quando os nazis cederam e  foi depois  condenado à morte  -,  nomeou Carbone director do estádio municipal..

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia: U.S. Congress, Comitee on Government Operations, Organized Crime, Mc Coy ( 2003) e  também Siragusa ( aqui numa entrevista dos anos 60).

publicado por FNV às 00:36 | link do post | comentar

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